19 outubro 2024

Para lá das gémeas


O caso das gémeas luso-brasileiras tem uma dimensão enorme e escandalosa, pelo valor do tratamento, pela forma expedita como a ele tiveram acesso, pelo estatuto dos facilitadores e pelo interesse da seguradora que se salvou de pagar um tratamento caríssimo.

Sobre isto, já se sabe o suficiente para serem tiradas as necessárias ilações éticas, políticas e eventualmente criminais. Não é minha intenção agora aqui fazer chover no molhado.

Mas, sem esta proporção, quem nunca apelou a uma ajudinha para ter acesso a um serviço ou ser mais bem tratado no SNS? Quem angustiado face a uma necessidade urgente não hesitou em fazer um telefonema e procurou uma atenção especial para si ou para os seus…? Talvez sobrem poucos para atirar a primeira pedra. Talvez porque, com ou sem razão, ficar na fila comum seja entendido como não suficiente para um tratamento atempado e cuidado.

Mais uma vez, insisto que o caso das gémeas está numa órbitra muita diferente de alguém que telefona à enfermeira de serviço a pedir uma especial atenção com quem está internado na cama X.

Convém realçar que quando se fala em igualdade no acesso e direito à saúde é também disto que se está a falar. O sistema deveria ter eficiência e reatividade para os cidadãos se sentirem confortáveis na fila comum, sem tentações para a furar. Isso seria num país a sério…

16 outubro 2024

Mudar de dono


Com 15 anos de diferença, 2 países tentam sair de uma guerra que, de uma forma ou de outra nunca conseguirão ganhar. Protagonistas, 2 generais.

Sendo o quadro institucional, reconhecimento e poder de De Gaulle na França de 1960 de nenhuma forma comparável com o de Spínola em Portugal em 1974, há alguns pontos em comum, sobretudo na forma como o processo encerrou.

Os movimentos de “libertação” exigiram e conseguiram o estatuto de interlocutores únicos, em seguida adotaram o princípio do “ganhamos, é nosso” e nos casos de haver mais do que uma força em jogo, entraram a seguir em guerra civil mais ou menos longa… Democracia, nem vê-la; pluralidade racial ou religiosa, excluídas.

Talvez que se França e Portugal tivessem tido o discernimento de entenderem os ventos da história a tempo e dirigido o processo noutra direção mais cedo, o desfecho poderia ter sido diferente, não sabemos.

O que sabemos é que, como me disseram noutra latitude e noutra língua, a independência foi “Cambiamos de manos”.

Os povos, em nome dos quais foram levantados os movimentos de “autodeterminação” não foram tidos nem achados e não tiveram a mínima palavra no pós-independência. Mudaram de dono, sendo os novos donos de outra raça ou de outra religião. No final não ficaram necessariamente a viver melhor…

12 outubro 2024

Oportunidade perdida


As crises, com todos os seus transtornos, privações e perdas, podem constituir oportunidades de aprendizagem, mesmo dramáticas e eventualmente tanto mais proveitosas quanto mais dramáticas.

Em 2011, a crise nacional, a intervenção da “troika” e todo o sofrimento que provocou poderia ter sido um desses momentos de aprendizagem dolorosa, mas não foi.

Poderia ter sido clarificado que a origem da crise fora uma governação corrupta e irresponsável e que a saída da mesma tinha sido o resultado do trabalho, empenho e sacrifício de todo o país, Podia, mas não foi… por causa das narrativas criadas.

Argumentar que o nosso colapso foi consequência da crise de 2008 é desde logo a primeira “narrativa” falsa. A crise foi mundial e não vimos todos os países de joelhos a mendigar junto do FMI. Entrar numa estrada de montanha a 140 km/h e despistar-se na primeira curva não é razão para culpar a curva…

A seguir, a perca final da oportunidade vem de outra narrativa. O sofrimento da crise foi devido à maldade da direita (e do Passos) e o alívio do aperto foi mérito da esquerda virtuosa que virou a página da austeridade. Se saímos do buraco em que o “Eng” Sócrates nos enterrou, não foi pelo esforço e sacrifício coletivo do país, mas pela generosidade e bondade do novo inclino de S. Bento.

Nos tempos que correm, parece que o PSD aprendeu a lição. Manter o poder depende de ter mãos largas e “quem mais chora, mais mama”… Trabalhar para criar riqueza que se possa distribuir não é o fundamental. Iremos pagá-lo de novo um dia, porque quem não aprende com os erros, acaba por os repetir.

11 outubro 2024

Pobres libaneses


Pobres libaneses que nascendo no que outrora era considerado a Suíça do Médio Oriente, multicultural e livre, vivem hoje num país destruído, desestruturado e de frágil autoridade.

Pobres libaneses que se viram invadidos em 1970 pelos palestinianos da OLP, expulsos da Jordânia num “setembro negro”, após programarem assinar o rei anfitrião e aí tomar o poder. Seguiu-se uma desestabilização e uma guerra civil, cujas cicatrizes ainda não desapareceram.

Pobres libaneses que a seguiram viram instalar-se no seu país uma organização militar patrocinada e dirigida pelo Irão e que, sem ser controlada nem prestar contas às autoridades libaneses, mais não busca do que violência e destruição.

Podemos entender que os Palestinianos na Cisjordânia tenham capital de queixa pela presença e controlo israelita; mais difícil é entender que a faixa de Gaza, deixada tranquila por Israel desde 2005 queira reacender a sua guerra, mas o Hezbollah? Que argumentos tem para estar há um ano a tentar massacrar o norte de Israel? Ainda por cima, sendo xiitas que ainda não há muito tempo lutavam ferozmente na Síria contra a família sunita onde se enquadra e se alimenta o Hamas?

Que, depois de um ano de ameaças e assédio, consideradas “normais” por uma certa comunidade internacional, agora Israel se defenda proactivamente, é de súbito um “ai Jesus”, que estão a escalar a guerra…?

Podemos e devemos questionar a estratégia de Israel em Gaza, mas que contra-ataque quem o ataca a partir do Líbano sem outra razão nem objetivo que não seja a sua destruição, deveria ser mais difícil de criticar.

Pobres libaneses que não os deixam viver em paz no seu outrora belo país, entre os seus cedros.

06 outubro 2024

(Des)cruzadas


É sempre interessante ver os dois lados, embora, com todo o respeito pelo Amin Maalouf e pelos seus excelentes escritos, do outro lado dos cruzados não estavam árabes, mas sim uma multitude de povos do Médio Oriente e não só. Saladino, o grande herói dos “árabes” que reconquistou Jerusalém aos “francos”, era de origem … curda. Quem diria. Uma etnia hoje não muito acarinhada por quem lhe constrói estátuas e venera como grande herói do Islão.

Árabe era, sem dúvida, o 2º califa, Omar, que conquistara a cidade aos bizantinos em 637, 15 anos apenas após a Hégira e a fundação oficial do Islão.

Hoje em dia associa-se cruzadas a abusos, barbaridades e violentas campanhas de evangelização, mas não é isso que me ficou. A não consolidação da presença latina na zona é capaz de ser precisamente resultado de o seu programa ser muito militar e pouco evangelizador/cultural. As cruzadas procuraram principalmente controlar e aceder à terra santa, nomeadamente Jerusalém. Acessoriamente marcar o poder de alguns papas e dar espaço de conquista a alguns senhores feudais aventureiros, posteriormente mesmo a reis, num caldo de misticismo medieval.

Não deixa de ser algo curioso que na mesma época a reconquista da península ibérica, “arabizada” a partir de 711, tenha sido consolidada a meados do século XIII, enquanto no outro extremo do mediterrâneo tudo acabou no final desse século com a conquista final de Acre pelos mamelucos (já agora, de árabes tinham pouco). Porque é que dois processos com tanto em comum no contexto e no calendário tiveram desfechos tão diferentes?

Falar atualmente em novas cruzadas, a propósito das intermináveis crises no Médio Oriente, é uma expressão sonante, mas oca de significado. Ninguém pega hoje na cruz (ou na metralhadora) para remissão de pecados e garantir acesso ao Paraíso…

Refletir sobre paralelismos e divergências entre processos históricos com o impacto que estes tiveram é um desafio aliciante. Por isso, hoje ficamos sem conclusões.

05 outubro 2024

IRC e IRS jovem

Parece que finalmente, vamos ter um consenso e ver um ponto final na dramática novela da aprovação do orçamento de Estado. Parece…

Independentemente do desenlace final, que desconheço no momento em que escrevo, acho impressionante que as grandes clivagens, opções estratégicas fundamentais e convicções profundas quanto ao programa orçamental do país se resumam a ponto a mais ou a menos em IRC e idade a mais ou a menos no IRS.

Foi/é um triste espetáculo de quem resolveu fazer disto espetáculo, e ponto capital que poderia até levar o país a novas eleições. Obviamente que não está/estava em causa o conteúdo objetivo, mal estaríamos se as grandes opções programáticas fossem estas.

Foi birra de quem queria ter tema de discórdia e pegou nestes, mas, sinceramente, poderiam ter arranjado assunto mais substancial. No resto estão completamente de acordo em tudo? Quanto às grandes opções nos campos económico, social, educação, saúde, justiça não há divergências nem propostas alternativas? Sinceramente…!