27 novembro 2008

Mas, mesmo aqui


Na galeria dos meus escritores de eleição esteve, está e estará Fiodor Dostoievsky. Chegou a estar no top 3 mas já não faço mais essas contabilidades detalhadas. Surpreendeu-me e surpreende-me como a mais de um século de distância os seus dramas continuam a ser tão actuais. Bom… pensando melhor e enchendo o peito de ar: a altura das saias sobe e desce, a forma dos colarinhos das camisas muda, mas no fundo e por trás de tudo isso, as misérias e grandezas da condição humana são intemporais e intemporais serão também as suas autênticas pinturas.

O herói de Dostoivesky é um nobre arruinado ou arruinando-se. Com tanto de quase tudo, teoricamente mais do que suficiente para um brilhante sucesso, mas passa ao lado de tudo e tudo desdenhando. Tipicamente suicida-se. Stravoguine deixa na mensagem final: “Mas, mesmo aqui, não pude odiar ninguém”. E, obviamente, aqui, em qualquer lugar e em qualquer tempo, odiar rima e rimará com amar. Com o grande desprendimento de quem nada agarra, dá tudo o que tem por nada. Desiste da forma mais completa possível: limpando o mundo e limpando-se a si.

A personagem de Dostoivesky é altamente improvável em termos não ficcionais, pelo menos daquela forma. Há o simulado que como conta Pessoa, e cito de memória, “num grande gesto magnânimo, dá ao primeiro mendigo que encontra tudo o que tem na algibeira, … mas apenas na algibeira onde guarda menos dinheiro… não sou parvo nem nenhum romancista russo”. Ou seja uma espécie de duplo falhado. Desistindo de desistir. Pretendendo possuir a grandeza de estar noutra escala de valor, onde o que vale para os outros para o próprio é indiferente, mas, no fundo, com um medinho, incoerente é certo, de perder o que não devia valer.

Stravoguines verdadeiros existirão então poucos ou nenhuns, mas quantos não há que sobem sorrateiramente ao sótão da solidão e que, em vez de passarem uma corda pelo pescoço, simplesmente fecham a porta e apagam a luz?

3 comentários:

APC disse...

Gostei muito. Efectivamente, reside um fundo de niilismo na maioria das personagens masculinas de Dostoievski. Vejamos Ivan, d'Os Irmãos Karamazov, Ivanovich, d'O Jogador, Raskolnikof, de Crime e Castigo... Falo apenas do que li.

Mas não apenas isso lhes falta, se me é permitido deambular por uma espécie de memória misturada... Também a fé, o pudor e o destino. São almas perdidas dentro de si.

Apenas à laia de curiosidade, também em Kafka (esse, checo) estranhamos por demais as emoções das personagens, de tão longe estarão das nossas (e.g. O Processo, O Castelo, A Metamorfose...); se bem que aí notamos bem mais uma extrema (e irracional) dificuldade a cada passo da acção (chegando a desesperar). Já nos homens de D., talvez mais nos desperte uma consciência algo desviada, o tanto de dilema interior, uma certa humilhação implícita, atrevo-me.

Gosto dos Russos. Também gosto da densidade das personagens (eles e elas) de Tolstoi (da mesma época), com um tal misto de bem e de mal, de força e de fraqueza. Acima de tudo, do poder narrativo; e do "ambiente"; dos retratos sociais e do que nos fica depois...

E, como comecei por dizer: gostei desta edição. E de cá voltar! :-)

Um abraço!

Carlos Sampaio disse...

No tempo do top 3, Kafka também lá estava, mas não arrisco mais paralelos. Em Kafka mais do que o personagem é todo o ambiente que é desconcertante; uma espécie de absurdo ilógico resultado de premissas lógicas “cerebralmente” baralhadas. Kafka desconstrói-nos o mundo; os russos têm uma densidade emocional muito mais intensa.

APC disse...

Ressalvo: comecei por falar de "um fundo" de niilismo, e depois disse "não apenas isso lhes falta". Incoerência gramatical, pois tá claro. Teria feito melhor se dissesse que não apenas isso está presente; ou que tudo não se limita a um vazio lato sensu, mas... Mas foi lapso! Ressalvado!