06 janeiro 2020

Quando as almas das empresas se perdem



A história trágica e caricata do Boeing 737 Max não me larga e continua a intrigar-me, mesmo depois de lhe ter dedicado algumas reflexões aqui e aqui. Como foi possível a uma empresa com os pergaminhos tecnológicos da Boeing se ter enfiado em tão grosseira asneira? Ao navegar no assunto, encontrei este interessantíssimo artigo  que me fez soar campainhas a vários níveis e acredito que também o fará a muitos meus antigos companheiros de estrada.

Em 1977, a muito saudável Boeing comprava a praticamente falida McDonnel Douglas, mas na recomposição acionista subsequente ficou a mandar a cultura da segunda. A entusiasta e bem sucedia família engenheira da Boeing foi cilindrada por frios gestores, distantes, mesmo geograficamente, cujas prioridades 1, 2 e 3 eram cortar custos a tudo custo.

A sede social foi transferida de Seattle, onde tudo tinha acontecido, para Chicago, onde qualquer coisa podia acontecer. Em vez gestores de topo nascidos e criados na casa, chegaram génios externos. Não do tipo que tanto podem gerir uma empresa tecnológica como um fabricante de refrigerantes, mas quase. Segundo o artigo acima citado, tudo isto mudou radicalmente a empresa, minou o empenho, o entusiasmo, destruiu a solidariedade e o espírito de família e, de certa forma, matou-lhe a alma.

É certo que este processo coincide com uma enorme alteração do negócio do transporte aéreo, onde, na sequência da desregulamentação, passou a ser necessário ter muito mais atenção à competitividade. Se a Boeing tivesse continuado a ser uma empresa de engenheiros entusiasmados e divertidos a inventarem aviões, poderia não ter sobrevivido. Mas se financeiros mauzinhos esquecerem que numa empresa que cria, e em maior ou menor escala são todas, é fundamental dar poder a criativos entusiasmados e divertidos com o que fazem e identificados de corpo e alma com o projeto, correrá mal.

Na ótica da maximização do valor para o acionista o genial Boeing 737 foi espremido para lá dos limites. Cortaram tanto os custos que acabaram por cortar algo de vital. Provavelmente porque é a Boeing e é nos USA, a empresa sobreviverá, mas o acidente tem escala suficiente para matar uma qualquer empresa, por muito saudável que seja. Noutras escalas e noutra paragens, quantas haverá por aí no passado e para o futuro a morrerem por terem perdido a alma? E em quantos casos, contas feitas entre a entrada e a saída, o processo não terá até “gerado valor para os acionistas”?


Imagem do voo inaugural do histórico Boeing 747

3 comentários:

Júlio Resende disse...

Não tenho dúvidas quanto à importância da alma de uma empresa. Ambos sentimos isso!

jorge neves disse...

Bem visto. Gostei dos "génios", que apoiando-se em consultoras, que por sua vez sabem tudo sobre tudo, dão cartas no mercado. Depois acontece o que se vê.

Carlos Sampaio disse...

J Resende... isso e não só!

J Neves - entendo que um consultor é usado/necessário para ter acesso a um conhecimento/experiência que não existe na organização. Quando se paga a consultores para desenhar a estratégia do negócio...