18 junho 2018

Essa coisa do árabe


Por um lado, a utilização da palavra “árabe” é frequentemente imprecisa e, por outro lado, a evocação da “presença árabe” na Ibéria é muito fantasiada.

Arábia é a península entre o mar vermelho e o golfo pérsico. Tendo o Islão e o seu profeta aí nascido e a religião daí se expandido, generalizou-se uma equivalência forçada entre muçulmano e árabe. Os povos conquistados e colonizados sofreram uma enorme influência, mas isso não significou assimilação completa com anulação de especificidades e culturas, havendo também, evidentemente, diferenciações nas evoluções posteriores. Por esse princípio nós, e muitos mais, seriamos hoje simplesmente “romanos”.

A generalização é ajudada pelo facto de que para um muçulmano ser “árabe” é partilhar a etnia do seu profeta principal. Esta tendência é reforçada ainda pelo conceito da nação global e única, seja a histórica Umma (comunidade de todos os crentes), sejam os mais recentes projetos pan-arabizantes como o de Nasser, a partir do Egito. Por falar neste país, como explicar que um egípcio se assuma principalmente como “árabe”, quando a cultura e a história do seu país dão vinte a zero à das tribos nómadas vizinhas? O mesmo se pode dizer dos naturais do Mashrek (Levante) berço da civilização e até da escrita e do Magreb (Poente) muito mais próximos culturalmente da Europa do Sul do que dos nómadas do Hejaz (interior da tal península).

Do lado de cá, até os mais preocupados com o “outro”, apelando ao respeito pela sua identidade e cultura, não hesitam em correr toda a gente com a etiqueta de “árabe”, desde Casablanca até Damasco. Errado, muito errado. Uma generalização pouco esclarecida e desrespeitadora da diversidade cultural existente.

Sobre a presença na Ibéria dos “árabes”, cruzam-se dois romantismos. Há o dos invasores, usurpadores, que entraram por aqui à má-fila, sem terem direito para tal, obrigando a malta séria a refugiar-se num sótão, lá nas Astúrias, para depois heroicamente repor a normalidade.

O outro romantismo é o da nostalgia da herança perdida. Como se com a conquista dos castelos, todo o conhecimento que chegou e se criou naquele tempo tivesse sido embalado e viajado para fora da península, perdendo-se irremediavelmente essa herança exótica. A sério…?!

Duas visões grosseiramente simplificadas. Não foi assim tão simples, nem tão compartimentado, nem tão rápido. Tarik atravessou o estreito em 711 e a reconquista definitiva das principais cidades ocorreu nos 1240s, excluindo Granada que aguentou mais dois séculos. Fazendo as contas, são cerca de 530 anos. Recuando esse intervalo de tempo a partir de hoje, Vasco da Gama ainda não teria chegado à Índia. Esses séculos não foram sequer um período homogéneo, mas uma sequência de vários distintos: dependência dos Omíadas de Damasco, califado autónomo, taifas, califado Almorávida, de novo taifas e, por fim, o califado Almóada.

E se se falasse e estudasse isto, colocando no devido lugar a Arábia e os seus camelos?

5 comentários:

Júlio Resende disse...

Gostei de aprender um pouco mais sobre "essa coisa do árabe". Parabéns!

jorge neves disse...

O Sampaio não fala em Mouros, que do Mondego para Sul ainda dominam.

Carlos Sampaio disse...

Obrigado, Júlio.

J. Neves, ao falar do norte de África, é mais preciso falar em mouros do que em árabes. De qualquer forma não é tudo igual e há até uns berberes de montanha que são nossos primos chegados.
O outro problema é existir um vírus na foz do Tejo, capaz de contagiar o mais puro asturiano!

Patrícia disse...

Interessante o post. Este é um tema que me desperta enorme interesse. Aqui no Brasil, intelectuais como Câmara Cascudo e Gilberto Freyre adotaram o termo "mouro" para se referir a esta presença. Eu, particularmente, acho uma boa proposta, mas admito que precisa ser melhor trabalhada, tanto para não se tornar imprecisa, quanto romantizada. Saudações cordiais.

Carlos Sampaio disse...

Mouro será mais adequado/próximo do que árabe, se bem que também tenha vindo gente do Médio Oriente. De todas as formas, é sempre perigoso reduzir e resumir realidades complexas a uma única palavra! :)