21 junho 2025

E se Adérito Lopes fosse trolha?

Toda violência é condenável e um ato concreto pode ter atenuantes ou agravantes conforme o contexto e as motivações em causa. Todo o cidadão tem o dever de ser protegido e de obter justiça, independentemente da sua situação social ou outra. Não há castas.

Quanto à recente agressão ao ator Adérito Lopes, parece-me haver claramente uma diferenciação difícil de justificar. Foi um ato condenável, sem a mínima dúvida, mas entre todas as agressões e crimes que infelizmente ocorrem diariamente, porque este teve direito a tanta ressonância? Se Adérito Lopes fosse um trolha a entrar num estaleiro e agredido no mesmo contexto, as reações seriam as mesmas?

Podemos dizer que sendo um ator, ligado à cultura, há um simbolismo especial. Então a agressão a Filipe Araújo, vice-presidente da CM do Porto, foi um ataque ao poder local, a merecer a mobilização solidária de todos os autarcas…?

Outra diferenciação tem a ver com a identificação do agressor. Quando se trata de um membro de uma comunidade eventualmente polémica, como africano, cigano ou imigrante, há um cuidado cirúrgico da comunicação social em omitir esse detalhe, para evitar “generalizações”. Quando se trata da extrema-direita, chega a ser noticiada a simples especulação de “com suspeitas de ligação à…”.

Que fique claro que abomino todo o tipo de iniciativas “musculadas”, independentemente da cor dos atores, mas quando há esta desproporção no tratamento dos casos, estamos perante uma diferenciação da justiça conforme as castas em jogo e, a prazo, acabamos a “beneficiar o infrator”.

17 junho 2025

De coração ou raça


Ser português não significa possuir características “raciais” especificas. Somos fruto de uma miscigenação enorme e não há portugueses “de gema”, fisicamente definidos, como noutras latitudes onde existe um tipo físico tradicional e se faz a distinção face a outros “cidadãos” que não o cumprem. Aliás, geneticamente falando, somos na “maioria” muito mais parecidos com os berberes das montanhas do Norte de África do com que os nórdicos!

Isto não significa que qualquer um dos 8 bilhões de habitantes do planeta que aterrar por cá, possa imediatamente ser considerado português, já que não há filtragem racial. Ser português haverá de implicar ter um mínimo conhecimento da cultura e história do país e identificar-se com a mesma. Haverá que o sentir e não há muitos países no mundo em que esse sentimento de pertencer a uma nação seja tão antigo como ele é em Portugal.

Ainda sobre a História de Portugal e identidade, no passado 10 de junho Ramalho Eanes foi condecorado com o grande colar da ordem de Avis, uma grande honra e distinção. Na sua génese esta ordem era militar e religiosa e combateu os muçulmanos na fundação de Portugal. Ainda ninguém se lembrou de pedir para a crismarem com outro nome, mais laico, inclusivo e menos “agressivo” face a outras religiões? E todos os que receberam a Ordem de Santiago sentem-se bem ao ver o seu nome associado ao santo “mata-mouros”?

A riqueza, e histórica temos muita, passa por não banalizar, saber procurá-la e entendê-la. Viva Portugal de coração sem raça.

16 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (VI)

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6) As motivações e os resultados reais

Qual a motivação real dos aderentes ao movimento…? A teoria conhecida e publicitada ou a inserção numa rede e o benefício de uma solidariedade tribal?

Considerando que a organização na sua liderança é coerente e sã, cabe-lhe a ela fazer esse policiamento e garantir que quem lá está, não está pelas cunhas e “proteções”, caso contrário é todo o edifício que fica descreditado. De boas intenções está o inferno cheio e publicitar boas intenções fraternais para satisfazer ambições individualistas é indecente.

A natureza secreta e solidária da organização pode também significar que um simples individuo que “incomodou” um membro, por uma razão qualquer, se torne um alvo designado e comece a receber patadas, sem saber muito bem de onde e porquê elas chegam, sobretudo se essa solidariedade tiver um cariz de militância tribal acrítica.

Como eu disse atrás, um dos positivos originais era o fim dos privilégios de casta.

E para que serve mesmo?

Volto à questão inicial. Qual o contributo (positivo de preferência) que esta organização me traz a mim e a qualquer cidadão “profano”? Não vale a pena listar os famosos cientistas, artistas e demais famosos que calçaram as luvas brancas. O que eu queria mesmo saber é em que é que a organização hoje “contribui para a minha felicidade” e do comum dos cidadãos.

Sinceramente, se realmente estão em causa princípios universais e objetivos “altos, nobres e justos”, venham a terreiro assumi-lo e explicar o que fazem mesmo, mesmo, mesmo, para a sociedade, exterior à organização.

Esta obscuridade não é saudável. E perdoem-me os mações sãos e de boa vontade se sentem que estou a ser injusto para com eles. Não era esse o objetivo.


15 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (V)

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5) O objetivo atual e potenciais conflitos

Aqui começamos com uma grandessíssima questão. Qual o objetivo atual da organização? Se se trata apenas do desenvolvimento intelectual e filosófico dos seus membros, será assunto privado. Ninguém é obrigado a revelar publicamente o livro que tem na mesinha de cabeceira. No entanto, se falamos de uma associação, vivemos em liberdade associativa, incluindo direitos e deveres. Se eu quiser criar uma associação columbófila ou de amigos da sueca, estas deverão ter estatutos públicos, definindo objetivos, forma de governo, etc... Uma “associação” que evita esta transparência pública e respetivas obrigações deve ser ilegal, talvez... haverá certamente muitos advogados bons conhecedores da realidade em causa que se podem pronunciar.

Agora, se ainda estamos na movida do século XIX em que existe um projeto de transformação social, aí a coisa complica-se. Vivemos em liberdade e podem ser criados partidos, movimentos cívicos e outros, mas que assumam e digam ao que vêm. Uma organização que quer intervir no nosso modelo social, a partir da sombra, parece-me conspiração. Não sei se é ilegal, mas não é bonito, nem havia “nexexidade”…

Claro que um eleito pode confessar a religião que entender, sem ser obrigado a revelá-lo nem a ser condicionado por isso…

Agora, mais uma condicional, tratando-se da pertença a uma organização com estrutura, hierarquia, juramentos e um “projeto” de sociedade, nesse caso a incompatibilidade é clara…

Pode alguém apresentar-se ao eleitorado com um dado programa público, ser eleito, tomar posse jurando a Constituição… para as 2ª, 4ª e 6ªs … e ao mesmo tempo ter promessa de lealdade a outro projeto qualquer, que o povo eleitor desconhece, para as 3ª, 5ªs e sábados… É claro que não.

Embora com menos gravidade, este potencial conflito de interesse pode existir na esfera privada. Tenho na minha equipa o António e o Manuel. O António é atual mestre da minha loja e na próxima sessão será decida a minha subida de grau… O António faz uma grande asneira… terei a mesma “força” para o criticar e eventualmente penalizar do que ao Manuel em caso idêntico, com quem não tenho nenhum relacionamento extraprofissional? E quando for necessário decidir uma promoção na empresa, não estará o António melhor colocado, sem ninguém entender porquê, se até erra mais vezes?

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14 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (IV)

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4) E a prática?

Um dos problemas recorrentes daqueles que sentem estar no “lado correto da história” é a tentação de promover os seus valores, não pelos valores, mas pela força, pelas milícias e até pelo terror, se “necessário” for. Como dizia Afonso Costa, o PRP devia permanecer no poder para «defender o povo, mesmo contra a vontade do próprio povo».

Esta militância das “boas” causas pode ser um catalisador de “maus” efeitos. Ainda sobre a nossa falhada Primeira República, há dificuldade em dizer abertamente que foi a sua falta de sentido democrático e de respeito pelo povo e instituições que abriu a porta ao Estado Novo. Não foram uns malvados que apanharam o “povo” distraído e usurparam o poder. Foi a vacância desse poder e de credibilidade que lhes deu a oportunidade e permitiu a sua fácil aceitação.

Se hoje podemos agradecer aos movimentos liberais, incluindo os maçónicos, o modelo de sociedade são (pelo menos mais são do que todos os outros), em que vivemos, importante seria chamar o nome às coisas… e assumir e aprender.

Porquê o secretismo ?

Podemos entender que durante a Guerra Civil Espanhola um maçon em território nacionalista, assim como um Opus Deu em zona republicana tivessem interesse e necessidade em permanecerem discretos, a bem da respetiva esperança de vida. Hoje ninguém, neste nosso mundo, corre riscos dessa natureza, donde, qual o interesse ou a necessidade de ficar escondido? Nas minhas contas, quem não deve, não teme e quem não teme não se esconde.

Será mesmo altamente recomendável que não se escondam…? 

Depende…  ver a seguir



13 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (III)

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3) Visibilidade

No radar do mundo que eu conheço, a organização ganha relevância nas grandes transformações da Europa no século XIX, iniciadas pela revolução francesa nos finais do XVIII. A passagem do absolutismo para o liberalismo, o poder constitucional democrático contra o real divino, a separação de poderes, o afastamento da igreja da governação do país e da organização da sociedade civil, e uma certa (já lá vamos ao detalhe) universalização dos direitos do homem (pelo menos dos considerados cidadãos). O fim dos privilégios de casta hereditários.

Pode-se dizer que aqui a maçonaria esteve do lado certo da história, no sentido em que os valores defendidos foram os que se consolidaram e o que na altura era fraturante hoje é praticamente consensual.

Sobre este aspeto e os fundamentos da maçonaria especulativa, para lá das questões básicas (e consensuais) da liberdade, igualdade e fraternidade, há duas coisas que me soam dissonantes. Uma é aquela coisa de que não há um Deus, que tenha criado o mundo, mas um ente superior, arquiteto, GADU – Grande arquiteto do universo - que o projetou… para a construção do mesmo, cá estão os pedreiros. Isto evoca-me um pouco a famosa reflexão do “Eu não acredito em bruxas, mas….”

O outro aspeto é a misoginia e o não reconhecimento da igualdade universal. Que no século XIX houvesse dificuldade em reconhecer direitos iguais à mulher, é discutível; que a nossa Primeira República, fortemente maçónica, recusasse o direito de voto às mulheres por receio de serem influenciadas pelo clero, é oportunismo; que no século XXI a principal obediência em Portugal continue fechada às mulheres é incompreensível e injustificável. Parece mais coisa de um “old fashioned british club” do que de uma organização que se reclama de progressista.

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12 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (II)

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2) As raízes - operativas

As pessoas e as organizações não são apenas o fruto do meio onde foram criados, mas este tem sempre alguma importância. Neste caso, na sua génese, a maçonaria é uma associação, uma espécie de ordem profissional ou sindicato de pedreiros. Tem um caráter corporativo, de proteção de uma classe/profissão, mas parece-me que com pouco ou nada de filosófico ou universal. É a chamada fase operativa de onde ficou o nome e de onde foram importados os símbolos ligados ao talhar a pedra, aplicados posteriormente aos códigos e rituais adotados.

Terá evoluído posteriormente, com a entrada de não artistas pedreiros e mudança de objetivos. Para dourar a pílula parece ser referida alguma ligação e transmissão, via templários, dos saberes de Salomão e do seu famoso templo… Enfim, o quê exatamente não sei e provavelmente os pedreiros-livres originais também ignorariam.  Talvez seja um segredo tão grande que ninguém o conhece,

Salomão e templários são sempre excelente tempero para receitas esotéricas.

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11 junho 2025

Para que serve a maçonaria? (I)

Pode-se perguntar?

Tenho a ligeira sensação de que apenas o avançar deste título faz soar alarmes, põe pirilampos a piscar e, enfim, coloca em prontidão um sistema capaz de julgar e condenar profanações de terreno sagrado…

Mas, se é possível questionar o que significa para a sociedade o Opus Dei, as Misericórdias, os Rotários, as testemunhas de Jeová… porque esta irmandade há-de ser tabu? Como dizia o saudoso Jó Soares, perguntar não ofende…

Correndo o risco de eventualmente enfrentar um julgamento secreto, sem direito a defesa, de foro incógnito e com possível condenação a degredo, masmorra ou cadafalso, avanço.

Ao fim e ao cabo, ser condenado por refletir e partilhar livremente as suas opiniões não é cadastro, é currículo e é liberdade… e a liberdade é um valor fundamental neste contexto, certo?

Não pretendo apresentar uma tese, não estudei para tanto, e o próprio caráter discreto da associação leva a que um estrangeiro, precise de avançar com hipóteses, suposições e muitos “ses”… O espaço fica aberto para complementos e correções às minhas reflexões e questões.

E paz na Terra aos homens (e mulheres) de boa vontade.

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10 junho 2025

Luis Vaz


 Ao desconcerto do mundo


Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado.

Sempre atual este Luís Vaz, para sempre vivo este Portugal

04 junho 2025

Foi assim tão mau?


Assisti ao discurso de apresentação da candidatura de Gouveia e Melo e, confesso, não o achei tão pobre e infeliz como o vejo a ser classificado nas tribunas dos comentaristas oficiais. Foi lato e excessivamente abrangente, tentando bater a todas as portas e a satisfazer todos os clientes? Sim, ao fim e ao cabo é suposto o PR ser presidente de todos os portugueses, mas não lhe encontrei contradições ou incompatibilidades. Comparando com as apresentações e discursos dos demais candidatos atuais e passados custa-me reconhecer nestes uma mensagem particularmente mais inspirada e focada.

Do que vi, preocupou-me mais a plateia, especialmente nas primeiras linhas. Essas sim eram muito pouco inspiradoras. Talvez que lá para trás houvesse gente dinâmica, arejada e potenciadores de mudança, mas os lugares da frente tinham um grande cheiro a mofo e a outros perfumes pouco agradáveis…

01 junho 2025

Ainda o sistema no SNS


Sobre os escândalos com as cobranças abusivas feitas por alguns médicos no SNS, fala-se de problemas e necessidade de correção no “sistema”.

Toda a gente que já lidou com situações em que a pessoa que não consegue responder às necessidades em horário normal é premiada com remuneração majorada em horas extras, sabe que há um risco enorme de ela procurar criar e manter condições para maximizar e aproveitar essa oportunidade. Também qualquer um com simples bom senso sabe que alguém registar os seus créditos sem validação terceira/hierárquica é uma porta escancarada para a falta de escrúpulos.

Para lá das correções necessárias, certamente, no “sistema”, vejo outro problema “sistemático”. As pornográficas folhas de salários desses médicos não foram vistas com ninguém com “olhos de ver”, independentemente do “sistema”? Gerir não é apenas aplicar regras definidas e enquanto elas forem cumpridas está tudo bem. Não! Gerir é estar atento e ter o “radar” ligado para escrutinar o que se passa e o que merece intervenção. A inação com estas situações não se desculpa pelas deficiências do “sistema”. É incompetência ou conivência.

28 maio 2025

Mais um engodo




Quando em 2022 foi necessário substituir Marta Temido, muita gente do sector achava que Fernando Araújo daria um excelente ministro da saúde. Tranquilo na sua maioria absoluta, o PS preferiu um apparatchik, na figura de Manuel Piçarro.

Para as últimas legislativas, na necessidade de captar votos e mostrar “capacidade” de fazer algo diferente, Fernando Araújo foi nada menos do que o cabeça de lista pelo Porto, apresentado pelo PS como se tivesse recrutado o Max Verstappen do SNS…

Escassas semanas depois, o ás de trunfo da saúde decide surpreendentemente que será mais útil no S. João, hospital, do que em S. Bento, Parlamento, aparentemente na sequência de uma “reflexão”… Não podia ter refletido antes de se ter entusiasticamente envolvido na campanha eleitoral? Será que ao PS, com a redução do grupo parlamentar, lhe faltam lugares para apparatchicks?

Um deputado poderia e deveria ser mais do que figura de corpo presente e o Parlamento seria valorizado se por lá houvesse gente que sabe mesmo de alguma coisa e fez algo na vida, para lá de lutas e tricas partidárias.

Uma coisa é certa, estas deserções precoces de cabeças de lista prestigiantes, cheiram a básico engodo para pescar eleitorado e não ajudam nada a credibilizar quem as organiza e quem nelas participa.

Atualizado em 30/5 com a publicação entretanto saída no Público

22 maio 2025

Camilo Castelo Branco




Celebrou-se recentemente o segundo centenário do nascimento do escritor, falou-se muito sobre isso e, por acaso, vi na mesma altura a série “Ferreirinha”, onde a sua história corre em paralelo, apesar de um pouco romanceada e mesmo branqueada. Por exemplo, a cegueira não foi devida ao período do cárcere e respetiva falta de luz…

No que por estes tempos li e ouvi sobre o autor, entendi que ele é considerado uma das figuras maiores da nossa literatura, certo, para muitos taco-a-taco com o grande Eça de Queiroz, para alguns mesmo acima.

Ora bem, de Eça li tudo, ou quase, do Camilo apenas encontrei perdida na minha biblioteca uma pequenina edição do “Amor de Perdição”, resultado de uma compra “obrigatória”, numa visita à Lello. Decidi partir à exploração do autor, considerando ser uma vergonha o desinteresse que lhe tinha dedicado.

Ao romance de referência já existente juntei “Maria da Fonte”, uma crónica sarcástica e mordaz sobre os acontecimentos de 1846 e sequente guerra da Patuleia, a partir das memórias do famoso Padre Casimiro, e de todas as incoerências e caricatos daquele período. Acrescentei as “Memórias do Carcere”, um bom retrato da sociedade da época e respetivos crimes e castigos e a “Queda de um Anjo”, a irónica típica novela do puro rural que chega à capital para ser amolecido e corrompido pela mesma.

Camilo indubitavelmente sabe escrever, disso não há dúvida, há ali elegância, não há arestas nem coisas que arranham os ouvidos. Agora, duas coisas menos bem para mim.

Para a caraterização de um personagem ou de uma ação existem adjetivos que bastem na língua portuguesa. Outra forma é por comparação com outrem, em analogia. Ele fez-se “sicrano”, ela agiu tal “beltrana”…. Camilo usa e abusa desta segunda via, com um enorme universo de sicranos e beltranos, clássicos, históricos e mesmo contemporâneos, alguns famosos apenas naquela época. Perde-se um pouco a leitura para quem não conhecer a galeria completa.

A outra questão é que Camilo salta muito para dentro da narrativa, não como um narrador personagem, mas como ele mesmo, frequentemente ironizando o desempenho dos seus personagens e até interpelando os leitores. É um pouco como se víssemos uma peça de teatro em que o encenador para a cena e sobe ao palco, para comentar o quadro, em nome próprio. Como se houvesse uma fronteira pouco clara entre o cronista, que opina, e o romancista que é suposto mergulhar-nos numa história e deixar-nos vivê-la, sem apartes nem interrupções.

Em resumo, a partir desta amostra, continuo claramente a votar em Eça de Queiroz. Numa particularidade Camilo passará à frente, que é na ligação ao país fora da capital. Apesar do seu cosmopolitismo e do castiço da “Cidade e as Serras”, Eça escreve “sentado” em Lisboa. Apesar da sua tentação de comentar e de se apresentar ele mesmo superiormente nas suas histórias, Camilo parece-me indubitavelmente mais próximo do mundo rural, das suas rudezas, grandezas e asperezas. Aqui deu-me vontade de saltar para o Miguel Torga, mas, por hoje fechamos assim.

Nota: Foto refeita já que a anterior foi considerada não angelical pelo FB e a publicação censurada :) 

21 maio 2025

Além Tejo, Alentejo


Formulou muito bem Orlando Ribeiro, que existem dois “portugais”, um Mediterrâneo e outro Atlântico. Para quem se interessa por entender o que é este país, o seu livro é obrigatório, mesmo.

Essa fronteira, que ouvimos na meteorologia como o sistema Montejunto-Estrela, teve no verão quente de 1975 um posto fronteiriço em Rio Maior, equipado com as famosas mocas, enfim… não faltam exemplos. Curiosamente esta clivagem nunca pôs em causa a unidade identitária do país nem levantou sérias veleidades separatistas.

O resultado destas últimas eleições é mais um exemplo quase perfeito dessa divisão do país. A particularidade é que este recorte eleitoral não é inédito na forma. No passado foi igual, com diferença apenas na cor. O sul do Tejo era vermelho comunista e agora é extrema-direita (populista).

Se eu fosso sociólogo atirava-me de cabeça a tentar entender como o Alentejo revolucionário abandonou os valores comunistas, para abraçar este populismo grosseiro. Os extremos tocam-se? Sim, um pouco, mas não será assim tão simples.

Durante anos o Alentejo foi para a esquerda uma espécie de puro e último reduto da “revolução”, objeto de devoção quase religiosa. Quando Henrique Raposo escreveu sobre a região, referindo as elevadas taxas de suicídios, não houve livros queimados na praça pública, mas pouco menos, tamanha foi a indignação da esquerda.

Enfim, não sei para mais e não quero entrar no terreno da especulação pura, mas gostava muito de entender o que existe neste Portugal mediterrâneo que um dia é comunista e no seguinte, dizem os ainda comunistas, fascista. Um mistério…?

20 maio 2025

Habituem-se…?

 

Nestas eleições vimos uma preocupante subida de um populismo irresponsável, cuja força, no entanto, não é a ideologia. Esta pouco é escrutinada e muitos preferem colocar simplesmente a etiqueta de “extrema-direita” (como antes se “lutava” colando etiquetas de “fascista” ou “neoliberal”…). Seria mais eficaz pôr a nu a sua inconsequência e falta de qualidade dos seus quadros do que infantilizar o eleitorado,

Quanto à queda do PS, não resisti em revisitar uma famosa entrevista de António Costa à revista Visão, regiamente instalado em cima da sua maioria absoluta em dezembro de 2022. Para lá de várias mensagens sobranceiras e arrogantes, Costa proclamava: Habituem-se vamos cá estar assim por quatro anos, independentemente de casos e casinhos que não interessam verdadeiramente ao “país real”. Ainda não passaram 3 anos sobre essa data e o país real mostrou não se habituar.

É evidente que o perfil do Pedro Nuno Santos não ajudou. Se o PS foi importante na fundação da nossa democracia, não o foi com lideranças deste perfil e nunca em irmandade com partidos de vocação totalitária.

O Chega tem/teve um eficiente papel destrutivo, mais por demérito dos outros, que se puseram a jeito, do que por mérito próprio. Papel eventualmente positivo, correspondente à responsabilidade que a sua nova dimensão exigiria, é difícil de o imaginar neste momento.

Estas eleições mostraram que o eleitorado não se habitua a tudo, em parte felizmente. Será o momento de os intervenientes responsáveis refletirem que é preciso mudar algo seriamente, senão serão mudados eles e o resultado, para o país real, pode não ser positivo.