Verão de 1944 e tempos seguintes. Depois de uma humilhante derrota e ocupação de quatro anos, França busca um rumo e uma nova normalidade. Os tempos imediatamente após os armistícios nem sempre são tranquilos. Há ajustes de contas e várias fações que se precipitam para o “vazio”, procurando tirar partido da transição para ganharem predominância e se imporem.
Este livro compila um conjunto de editoriais e de respostas públicas
de Albert Camus. Clarividente, humano, objetivo, preciso e elegante, ele defende
que deve haver justiça, mas resistindo a cair no ódio; que é preciso mudanças,
mas não com uma nova guerra e que totalitarismos e campos de concentração são a
condenar veemente, independentemente da cor e da bandeira dos mesmos. Convém
recordar que na altura uma boa parte da “intelligentsia” ainda acredita na
“necessidade” de lutar por todos os meios pelo “homem novo”.
Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi hoje, na maior
parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e
do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das
disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao
diálogo refletido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu
lado, num tumultuoso monólogo,
…
Vivemos no terror, porque a persuasão já não é possível,
porque homem se entregou totalmente à História e já não é capaz de se virar
para a outra parte de si, tão verdadeira como a parte histórica, que pressente
na beleza do mundo e no rosto dos outros; porque vivemos no mundo da abstração,
no mundo dos gabinetes e das máquinas, das ideias absolutas e do messianismo
sem cambiantes. Vivemos asfixiados no meio de pessoas que creem ter absoluta
razão, seja nas máquinas, seja nas ideias que têm. E para todos os que não
podem viver privados de diálogo e de amizade humana, um tal silêncio é o fim do
mundo.
…
Sou pela pluralidade das posições. Será que se pode fazer o partido dos que não
têm a certeza de ter razão? Seria o meu. De qualquer modo, não insulto os que
não estão comigo. É a minha única originalidade.
…
E não se trata aqui
de defender um sentimentalismo ridículo que englobasse todas as raças na mesma
terna confusão. Os homens são todos diferentes, é verdade, e eu sei das
profundas tradições que me separam de um africano ou de um muçulmano. Mas sei
também o que nos une, sei que há, em cada um deles, algo que não posso
desdenhar sem me destruir mim mesmo. É por isso que é preciso dizer claramente
que tais sintomas, espetaculares o não, de racismo revelam o que há de mais abjeto
e de mais insensato no coração do homem
…
Nos anos vindouros, através dos cinco continentes, irá
prosseguir uma luta interminável entre a violência e a prédica. É evidente que
a primeira tem mil vezes mais possibilidades de vencer do que a segunda. Mas eu
sempre pensei que se o homem que tem esperança na condição humana é um louco, o
que desespera dos factos é um covarde. E. doravante, a única honra está em sustentar
teimosamente esta formidável aposta que irá decidir se as palavras são ou não
são, afinal, mais fortes do que as balas.
…
Se tivesse tempo, diria também que esses homens deveriam
tentar preservar na sua vida pessoal aquela parcela de alegria que não pertence
à história. Querem fazer-nos crer que o mundo de hoje tem necessidade de homens
totalmente identificados com a sua doutrina e almejando fins definitivos, numa
submissão total às próprias convicções. Acho que, no estado em que se encontra
o mundo, esse género de homens fará mais mal do que bem. Mas admitindo, o que
não creio, que eles acabem por conseguir fazer triunfar o bem até ao final dos
tempos, parece-me a mim necessário haver outro género de homens interessados em
preservar alguns leves cambiantes, o estilo de vida, a possível felicidade, o
amor e, enfim, o difícil equilíbrio, de que os filhos desses homens também irão
afinal necessitar, mesmo que a sociedade perfeita seja já uma realidade
…
Sabemos que a nossa sociedade assenta na mentira. Mas a
tragédia da nossa geração foi ter visto, sob as falsas cores da esperança, uma
nova mentira sobrepor-se à antiga. Nada, pelo menos, nos obriga a chamar
salvadores aos tiranos e a justificar, com a salvação do homem, o assassínio da
criança. E assim, recusamo-nos a crer que a justiça porventura exija, mesmo
provisoriamente, a supressão da liberdade. A dar-se-lhes ouvidos, sempre as
tiranias são provisórias. Explicam-nos que há uma grande diferença entre a
tirania reacionária e a tirania progressista. Haveria assim campos de concentração
que vão no sentido da história e um sistema de trabalho forçado que pressupõe a
esperança. Admitindo que tal fosse verdade, podíamos pelo menos interrogar-nos
sobre a duração dessa esperança. Se a tirania, embora progressista, durar mais
de uma geração, isso significará, para milhões de homens, uma vida de
escravidão, e nada mais. Quando o provisório abarca a vida inteira dum homem,
torna-se, para esse homem, definitivo.
…
Quando a morte se torna negócio de estatísticas e de
administração é que de facto as coisas do mundo não vão lá muito bem. Mas se a
morte se torna abstrata é porque a vida também o é. E a vida de cada um mais
não será do que uma abstração, a partir do momento em que alguém se lembre de a
submeter a uma ideologia. A desgraça é que nós estamos no tempo das ideologias
e das ideologias totalitárias, isto é, suficientemente seguras de si, de sua
razão imbecil ou da sua tacanha verdade, para só considerarem a salvação do
mundo debaixo do seu próprio domínio. E querer dominar alguém ou alguma coisa é
desejar a esterilidade, o silêncio ou a morte dessa mesma coisa ou pessoa.
…
Tenho horror à violência confortável. Tenho horror aqueles
cujas palavras vão mais longe do que os actos. E aí que me afasto de alguns dos
nossos grandes espíritos, cujos apelos ao crime deixarei de desprezar, quando
forem eles a empunhar as armas da execução.
…
O longo diálogo dos homens acaba de se interromper. E não há
dúvida de que um homem que não se pode persuadir é um homem que mete medo. E é
assim que, a par das pessoas que não falavam por considerá-lo inútil, ia
alastrando e alastra ainda uma imensa conspiração de silêncio, aceite pelos que
tremem e que encontram bons motivos para a si próprios ocultarem esse temor, e
criado pelos que nele têm interesse. «Não se deve falar da depuração dos
artistas na Rússia, porque isso aproveita à reação.» «Não se deve falar no
apoio dos Anglo-saxões a Franco, porque isso só aproveita ao comunismo.» Bem
dizia eu que o medo é uma técnica.
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