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17 agosto 2025

Atualidades de há 80 anos


Verão de 1944 e tempos seguintes. Depois de uma humilhante derrota e ocupação de quatro anos, França busca um rumo e uma nova normalidade. Os tempos imediatamente após os armistícios nem sempre são tranquilos. Há ajustes de contas e várias fações que se precipitam para o “vazio”, procurando tirar partido da transição para ganharem predominância e se imporem.

Este livro compila um conjunto de editoriais e de respostas públicas de Albert Camus. Clarividente, humano, objetivo, preciso e elegante, ele defende que deve haver justiça, mas resistindo a cair no ódio; que é preciso mudanças, mas não com uma nova guerra e que totalitarismos e campos de concentração são a condenar veemente, independentemente da cor e da bandeira dos mesmos. Convém recordar que na altura uma boa parte da “intelligentsia” ainda acredita na “necessidade” de lutar por todos os meios pelo “homem novo”.

Recortei algumas passagens que passo a seguir. Os que tiverem muito interesse, podem procurar o livro; os que tiverem pouco, que fiquem por aqui. Ninguém é obrigado a ler até ao fim, mas, são sempre atualidades.

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Não há vida sem diálogo. Mas o diálogo foi hoje, na maior parte do mundo, substituído pela polémica. O século XX é o século da polémica e do insulto. Eles ocupam, entre as nações e os indivíduos, e mesmo ao nível das disciplinas outrora desinteressadas, o lugar que tradicionalmente cabia ao diálogo refletido. Dia e noite, milhares de vozes, empenhadas, cada uma por seu lado, num tumultuoso monólogo,

Vivemos no terror, porque a persuasão já não é possível, porque homem se entregou totalmente à História e já não é capaz de se virar para a outra parte de si, tão verdadeira como a parte histórica, que pressente na beleza do mundo e no rosto dos outros; porque vivemos no mundo da abstração, no mundo dos gabinetes e das máquinas, das ideias absolutas e do messianismo sem cambiantes. Vivemos asfixiados no meio de pessoas que creem ter absoluta razão, seja nas máquinas, seja nas ideias que têm. E para todos os que não podem viver privados de diálogo e de amizade humana, um tal silêncio é o fim do mundo.

Sou pela pluralidade das posições.  Será que se pode fazer o partido dos que não têm a certeza de ter razão? Seria o meu. De qualquer modo, não insulto os que não estão comigo. É a minha única originalidade.

 E não se trata aqui de defender um sentimentalismo ridículo que englobasse todas as raças na mesma terna confusão. Os homens são todos diferentes, é verdade, e eu sei das profundas tradições que me separam de um africano ou de um muçulmano. Mas sei também o que nos une, sei que há, em cada um deles, algo que não posso desdenhar sem me destruir mim mesmo. É por isso que é preciso dizer claramente que tais sintomas, espetaculares o não, de racismo revelam o que há de mais abjeto e de mais insensato no coração do homem

Nos anos vindouros, através dos cinco continentes, irá prosseguir uma luta interminável entre a violência e a prédica. É evidente que a primeira tem mil vezes mais possibilidades de vencer do que a segunda. Mas eu sempre pensei que se o homem que tem esperança na condição humana é um louco, o que desespera dos factos é um covarde. E. doravante, a única honra está em sustentar teimosamente esta formidável aposta que irá decidir se as palavras são ou não são, afinal, mais fortes do que as balas.

Se tivesse tempo, diria também que esses homens deveriam tentar preservar na sua vida pessoal aquela parcela de alegria que não pertence à história. Querem fazer-nos crer que o mundo de hoje tem necessidade de homens totalmente identificados com a sua doutrina e almejando fins definitivos, numa submissão total às próprias convicções. Acho que, no estado em que se encontra o mundo, esse género de homens fará mais mal do que bem. Mas admitindo, o que não creio, que eles acabem por conseguir fazer triunfar o bem até ao final dos tempos, parece-me a mim necessário haver outro género de homens interessados em preservar alguns leves cambiantes, o estilo de vida, a possível felicidade, o amor e, enfim, o difícil equilíbrio, de que os filhos desses homens também irão afinal necessitar, mesmo que a sociedade perfeita seja já uma realidade

Sabemos que a nossa sociedade assenta na mentira. Mas a tragédia da nossa geração foi ter visto, sob as falsas cores da esperança, uma nova mentira sobrepor-se à antiga. Nada, pelo menos, nos obriga a chamar salvadores aos tiranos e a justificar, com a salvação do homem, o assassínio da criança. E assim, recusamo-nos a crer que a justiça porventura exija, mesmo provisoriamente, a supressão da liberdade. A dar-se-lhes ouvidos, sempre as tiranias são provisórias. Explicam-nos que há uma grande diferença entre a tirania reacionária e a tirania progressista. Haveria assim campos de concentração que vão no sentido da história e um sistema de trabalho forçado que pressupõe a esperança. Admitindo que tal fosse verdade, podíamos pelo menos interrogar-nos sobre a duração dessa esperança. Se a tirania, embora progressista, durar mais de uma geração, isso significará, para milhões de homens, uma vida de escravidão, e nada mais. Quando o provisório abarca a vida inteira dum homem, torna-se, para esse homem, definitivo.

 

Quando a morte se torna negócio de estatísticas e de administração é que de facto as coisas do mundo não vão lá muito bem. Mas se a morte se torna abstrata é porque a vida também o é. E a vida de cada um mais não será do que uma abstração, a partir do momento em que alguém se lembre de a submeter a uma ideologia. A desgraça é que nós estamos no tempo das ideologias e das ideologias totalitárias, isto é, suficientemente seguras de si, de sua razão imbecil ou da sua tacanha verdade, para só considerarem a salvação do mundo debaixo do seu próprio domínio. E querer dominar alguém ou alguma coisa é desejar a esterilidade, o silêncio ou a morte dessa mesma coisa ou pessoa.

Tenho horror à violência confortável. Tenho horror aqueles cujas palavras vão mais longe do que os actos. E aí que me afasto de alguns dos nossos grandes espíritos, cujos apelos ao crime deixarei de desprezar, quando forem eles a empunhar as armas da execução.

O longo diálogo dos homens acaba de se interromper. E não há dúvida de que um homem que não se pode persuadir é um homem que mete medo. E é assim que, a par das pessoas que não falavam por considerá-lo inútil, ia alastrando e alastra ainda uma imensa conspiração de silêncio, aceite pelos que tremem e que encontram bons motivos para a si próprios ocultarem esse temor, e criado pelos que nele têm interesse. «Não se deve falar da depuração dos artistas na Rússia, porque isso aproveita à reação.» «Não se deve falar no apoio dos Anglo-saxões a Franco, porque isso só aproveita ao comunismo.» Bem dizia eu que o medo é uma técnica.

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