27 maio 2014

Até somos civilizados

O resultado das últimas eleições mostrou mais um passo claro para o fim do rotativismo democrático e uma correspondente grande incerteza e preocupação quanto à fase seguinte. Antes era: estavam os azuis no poder e o eleitorado castiga-os votando nos vermelhos; a seguir os papéis invertiam-se. O que se vê cada vez mais, para lá do aumento da abstenção, é o eleitorado saturado e descrente com estes círculos fechados de poder. Curiosamente em França, que vai de choque em choque com o crescimento da Frente Nacional, e até já estará em pânico a pensar nas próximas presidenciais, logo no dia seguinte ao das eleições, rebenta um escândalo com os dinheiros da última campanha de N. Sarkosy. E bem podem continuar chocados com o crescimento da extrema-direita…

Em Portugal, se alguém cresceu, não foram xenófobos, melhor ou pior disfarçados, como em França e na Bélgica, não formam radicais de esquerda como na Grécia, nem um palhaço como há pouco tempo ocorreu em Itália. Foi o Partido da Terra e não foi pelo seu programa. Foi simplesmente por ter recorrido a alguém que não foi jotinha, que fez carreira profissional fora da política e que, bem ou mal, não hesita em dizer frontalmente o que pensa. Não sabemos qual o resultado prático, mas, deriva por deriva, esta é muito mais saudável e civilizada do que a maior parte das outras que vimos acontecer pela Europa fora.

Os partidos tradicionais do poder em vez de chorarem o leite derramado e evidenciarem as fraquezas ideológicas ou estruturais destas alternativas, fariam melhor em entenderem e responderem às expectativas do eleitorado que, no fundo, nem são muito complicadas. É apenas questão de envolveram pessoas competentes, com coluna vertebral e terem contas limpas. Não multiplicarão a votação por 10 como o MPT, mas entrarão no bom caminho. Um regime em que esses partidos se esvaziam pode ser um cenário catastrófico… e a culpa não é das alternativas.

23 maio 2014

Jogos de nações e de valores

Peter Gabriel cantava que “Jogos sem fronteiras são uma guerra sem lágrimas”. Uma competição em que existe um representante assumido da nação, carregando a sua bandeira, tem um peso muito especial. É o caso, muito representativo, dos campeonatos de futebol de selecções que mobilizam intensamente quem durante o restante tempo nada liga a esse desporto.

Algo semelhante se passa com o Eurofestival onde passa a “nossa canção”. Passando ao lado a triste qualidade da nossa representação, o próprio evento em si também está a “passar-se”. É mais fácil alguém recordar-se de uma canção vencedora há 30 anos, do que há 3. Na edição deste ano, deu-se mais um passo nessa descida.

Não tenho nada contra LGBT’s (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis e espero não me esquecer de nenhuma outra situação. Se nalguns países/contextos ainda existe discriminação negativa, isso não justifica nenhuma discriminação positiva para “compensar”. Depois se a Conchita Salsicha (wurst em alemão é salsicha) é um homem que quer ser/parecer mulher, aquela barba torna-a/o… repelente.

Mas resultou e ganhou. Os russos que aprendam como se faz e, e para a próxima, em vez de duas gémeas bonitinhas, arranjem umas com bigode! Do nosso lado, tenho uma excelente ideia para melhorar a nossa classificação – envia-se o Zé Cabra. Se é certo que no peito dos desafinados também bate um coração, quando o critério deixa de ser objectivamente a qualidade intrínseca do desempenho da função em causa, isso é abastardar (e desculpem-me os bastardos literais por usar o adjectivo).

19 maio 2014

Regras e liderança

A Europa que eu quero” Esta citação do presidente francês dava o título a um artigo do Le Monde, simbolicamente ilustrado com fotografia com Hollande bem central e Merkel em segundo plano e fora de foco. O todo diz muito sobre a visão e acção da França e da Alemanha na Europa. Os primeiros gostariam de liderar, sonham com isso e mesmo que mandem pouco, falam e agem como se mandassem; os segundos têm todos os atributos (ou quase todos) para liderar, mas não querem, atribuindo-se um perfil pelo menos publicamente discreto. Aparentemente para Angela Merkel o fundamental é seguir as regras, dispensando-se um protagonista alfa. Efectivamente, se houver um conjunto de regras justas e claras, não é nem deve existir um sinaleiro em cada cruzamento a decidir discricionariamente quem passa em primeiro lugar. Os franceses poderão concordar com o princípio, mas com a condição de as regras serem definidas ou fortemente influenciadas por eles.

Só que isto é para o dia-a-dia. Para o futuro é necessário visão e inspiração e isso não nasce dos regulamentos. É necessária capacidade de mobilizar, inovar, realmente liderar. Não é o mandar do policia-sinaleiro, é o leme do capitão frente ao oceano desconhecido. E se na Europa isso falta de forma atroz, o curioso é a Alemanha declarar ser desnecessário… Será mesmo por incapacidade ou simples manha?

16 maio 2014

Terreno perigoso

Aviso prévio: Esta história é parcialmente ficcionada e pisa terreno perigoso.

Triana queria ser servidora da causa pública e estrategicamente colocou-se à sombra da chefona local, Carrasco. Começou por correr bem. A chefona mandava em tudo, fazia e desfazia e todos a seguiam. Triana trabalhava para a administração sem ter um vínculo claro, mas isso não era importante, desde que houvesse bênção de Carrasco. Triana participou mesmo nas listas eleitorais e ficou a um lugar de ser eleita.

Um dia algo correu mal entre elas e Triana caiu em desgraça. Para o seu lugar foi aberto um concurso oficial, ela concorreu mas ficaram-lhe à frente muitos novos protegidos. Entretanto, um dos eleitos demitiu-se, em desacordo com Carrasco, e, em princípio, Triana seria chamada para a substituição. Alguém decidiu, no entanto, que a substituição não seria feita por faltarem poucos meses para as novas eleições, assim como decidiu que nunca Triana poderia de novo integrar nenhuma lista do partido. A sua carreira política acabava ali.

Triana não encontrou trabalho, nem na administração pública nem no privado. Talvez por falta de oportunidades ou de capacidade, mas, para ela, era ainda o braço longo de Carrasco que a todo o lado chegava e castigava. Aparentemente a sua carreira profissional na terra acabava ali.

O castigo não foi apenas passivo, a administração pública implacável explorou a informalidade da sua colaboração anterior para encontrar quantias indevidamente recebidas, que ela foi condenada a devolver. Era muito dinheiro e o pedido feito para pagar em prestações foi recusado. Entretanto, Carrasco coleccionava cargos em tudo o que era público ou próximo, chegando à dúzia. Apresentava-se numa reunião de uma entidade em veículo oficial de outra e apresentava despesas para reembolso como se tivesse utilizado a sua viatura particular, mas ninguém tinha coragem de a questionar, nem nada devolveu, apesar de o assunto ter sido denunciado na imprensa nacional.

Triana vê-se a perder tudo, até mesmo em risco de ter de vender a casa para pagar a dívida e desespera. A mãe dela, face à cria ameaçada, compra uma pistola e mata Carrasco friamente à queima-roupa.

Esta história tem bastantes semelhanças com aldo que aconteceu em Leão, Espanha, com desfecho no passado dia 12/5. Nada justifica a morte, melhor seria terem-lhe pregado apenas um valente susto. Entretanto o bispo já abençoou o corpo da servidora da “causa pública”, tragicamente tombada. A barbaridade do fim é muito forte, sobrepõe-se e quase anula a importância do resto, mas a democracia pediria que se fosse ao fundo e se condenasse e banisse este caciquismo puro e duro, aquela coisa do “Quem se mete comigo, leva! E leva com a força toda! E eu tenho muita força”. O serviço público não devia ser assim.

13 maio 2014

Glosa Crua, 9 – Tempo, 0


O Glosa Crua faz hoje 9 anos. Eu já disse e redisse que não gosto de celebrar efemérides, mas esta tento não deixar passar, nem que seja de forma minimalista com a imagem das garrafas de champanhe acumuladas. Poderia fazer algum tipo de análise ou estatística dos 1127 posts, quantos ainda penso serem actuais, quantos foram também publicados como carta ao Director(a) do Público, coisa mais ou menos regular desde 2003, quantos são simples fotos legendadas, quantos são narrativas ficcionadas, mas não vou fazer nada disso. Limito-me a referir que é com gosto e prazer que por aqui andei e me apraz constatar que continuarei.

E, não resistindo a alguma visão retrospectiva, chamo o texto escolhido para abrir o Glosa Crua, inicialmente publicado no Público em Novembro 2003. Já vai longe o problema da relva dos estádios do Euro 2004, mas a outra questão, a da educação feminina em Africa, não mudou e estes dias até se tornou especialmente visível: “Todas as crianças”.

07 maio 2014

Ó tempo volta para trás?

Por mero acaso, espreitei a televisão durante a “meia-final” do Festival da Eurovisão. Corria o convite ao voto com a passagem dos números de telefone e votar custava um tanto por chamada, mais IVA. Muito democrático, sem dúvida. Um pouco a propósito, a democracia chegou-nos há 40 anos e teve como senha de partida uma canção da Eurovisão, o fantástico “E Depois do Adeus”. Foi no tempo da ditadura. No da democracia, em que todos podem votar por “X + IVA”, ficamos com o “Eu quero ser tua”.

Vamos dizer “Ó tempo volta para trás”? Evidentemente que não, mas se uma coisa esta evolução do Festival de Canção prova é que o sucesso da democracia não reside simplesmente na formalidade de todos poderem votar (com ou sem preço) e pronto.

Para lá deste uso e abuso da democracia mealheiro, a televisão genérica é, no mínimo, pouco formativa. Se é verdade que agora não faltam outros canais e outros meios para formação e entretenimento construtivo, a televisão é e continuará a ser um veículo privilegiado de desenvolvimento cultural e social. Quem teve o privilégio de lá ver passar os “monstros” enormes de comunicação e de cultura que instruíam e cativavam o país inteiro, não os esquece certamente. Agora escolha lá: J. Hermano Saraiva ou J. Luís Goucha; Ary dos Santos ou Suzy “Emanuel”; João Villaret ou Teresa Guilherme – são só 60 cêntimos mais IVA.

06 maio 2014

Boko Haram

“Boko” deriva de “book”, um resquício do inglês colonial, e “haram” significa “pecado”. “Boko Haram” quer dizer “Educação ocidental é pecado” e é o nome de um grupo islamita activo na Nigéria. Um dos pecados combatido ferozmente por eles é a educação não corânica, especialmente a feminina, e entre os seus alvos principais estão escolas e estudantes. No passado dia 14 de Abril foram raptadas 276 estudantes de um liceu no nordeste do país. 53 conseguiram fugir mas 223 permanecem desaparecidas. Embora a responsabilidade pela acção não oferecesse muitas dúvidas, um filme divulgado esta semana esclarecesse definitivamente. Diz o líder do Boko Haram que as raparigas estão com eles, algumas serão mantidas como escravas, outras vendidas por 12 dólares cada (menos de 10 Euros). Conclui com um aviso às demais pecadoras: “deveis deixar a escola e casar-vos”.

Dificilmente alguém poderá concordar ou desculpar minimamente este energúmeno que se presume falar e agir em nome do Islão. Conheço muitos muçulmanos que não têm a mínima hesitação em condenar e repudiar frontal e publicamente tais propósitos. Apesar de não existir um líder equivalente ao Papa nem uma instituição reguladora como o Vaticano, era importante que as figuras públicas muçulmanas relevantes e influentes viessem a público proactivamente marcar uma linha e deixar claro onde começa o real “haram”. Não me parece que o façam com suficiente determinação e/ou visibilidade e é pena para o Islão e os muçulmanos.

05 maio 2014

Saída consolidada… ?

Estes dias, do anúncio de concretização da saída chamada limpa, são um momento algo ambivalente e não me refiro aos politiqueiros e comentaristas de serviço que lá vão dizendo bem e mal, como é seu ofício, mas sem conseguirem a contundência habitual das suas intervenções.

Há um aspecto claramente positivo: conseguimos chegar ao fim do programa de assistência com sucesso, pelo menos formal. Ficamos identificados como mais próximos da Irlanda do que da Grécia e este é um contributo inequivocamente positivo para a imagem do país. Por outro lado, estamos pior do que há 3 anos? Sem dúvida, mas a comparação a fazer não é essa: estaríamos melhor do que se não tivesse havido programa de assistência? É uma pergunta algo retórica porque sem a intervenção o país teria colapsado financeiramente, um cenário certamente pior do que o actual.

Outro aspecto positivo do momento são as baixas taxas de juro, mas isto não é fundamentalmente devido a causas internas nem se aplica particularmente a Portugal. É geral e em muito devido à actual tormenta nos mercados emergentes, que assusta os “mercados”. Ou seja, se em meia dúzia de meses desceram, o inverso pode acontecer também, não é uma situação consolidada.

E, por falar em consolidação, aqui temos a principal falha visível no fim do processo. A melhoria das contas públicas foi feita fundamentalmente por aumento de impostos e pelos famosos cortes, objecto de grande pressão para serem anulados. Até o líder do maior partido da oposição o advoga. Ou seja, é como se tivéssemos melhorado da dor de cabeça com um analgésico e agora dizer-se que não se pode tomar analgésicos toda a vida.

Da reforma do Estado, real, que podia e devia ter sido feito e tido o tal efeito consolidador fica na memória a grotesca, ridícula e inócua comunicação do na altura recém-nomeado vice primeiro-ministro. Infelizmente muito pouco mais.

02 maio 2014

Eu não quero os Miró

Não entendo tanto assanho e agitação contra a saída do país da colecção Miró, ex-BPN. Em primeiro lugar é de realçar que a sua compra não foi feita com fundos próprios de alguém. Foi mais uma parcela do saque aos dinheiros públicos que tanto está a custar limpar. Por isso, há alguma justiça em os vender e reembolsar o contribuinte que não foi tido nem achado nem representado na transacção inicial. Depois, qual o significado de ter uma colecção do pintor catalão em Portugal? Algum, mas não muito…

E se o produto dessa venda fosse aplicado a restaurar, conservar e promover património genuinamente português em risco? Culturalmente será muito mais relevante e prioritário ver a nossa herança cultural salvaguardada do que ter aqueles quadros algures numas salas em Lisboa.